A cidade em 2002

8 de novembro de 2018 / Inspiration, Sem categoria / 0 Comments /

Era o ano da vitória de Lula, da chegada de um novo projeto num Brasil que custava a reconhecer a necessidade real de mudança. No dia da votação, em outubro, peguei a câmera e sai vagando pela avenida Paulista. A cidade era uma imundície de imagens, palavras, papéis, faixas e fotos. Praticamente todos os candidatos eram homens e a cor que predominava era o vermelho. Temas como a Alca, mostravam onde estávamos, sempre divididos entre o avanço a qualquer custo e a organização de um espaço equânime. Em meio a todas essas imagens penduradas uma sobre as outras, me lembram fãs que se digladiam para chegar mais perto do ídolo. Um amálgama de objetos que carregavam por trás ideias, promessas, discursos. Mas a imagem que mais me fascina desse ensaio é a do morador de rua deitado sobre um tecido que lhe resta, portando a camiseta de um candidato. Até esse corpo vale como bandeira de propaganda, esse corpo que deveria estar representado nas bandeiras políticas. A distância entre ele, o político e o real se traduz em iniciativas como o aumento de salário para o STF, que conduz a um aumento de todo o funcionalismo público. A quantia poderia ser investida em diminuir as diferenças sociais, mas a quem importa isso mesmo? A quem importou em toda a história da humanidade?


À venda

23 de agosto de 2018 / Sem categoria / 0 Comments /

Houve um período em que vendi minhas imagens para que outros vendessem seus produtos. Eu recebia um valor que era exorbitante para uma adolescente de 17, 18 anos e as marcas vendiam uma imagem que as localizassem de alguma forma dentro dos sonhos alheios. Quando eu voltei a morar em BH e re-encontrei meu book de modelo, achei tudo estranho demais. Não me reconhecia nas imagens, assim como não me reconheço direito quando vejo uma foto de dez anos atrás. Nossa imagem é algo tão fugidio que parece até insanidade pensar que esse instante possa valer tanto. Que o rosto de uma linda mulher estampada na embalagem de um perfume possa valer cifras altíssimas, que a maioria das pessoas no mundo nuca receberão. Uma imagem que hoje ainda mais, é tão descartável, tão fugidia, quase inócua. Que desaparece num passar de dedos sobre a tela dos nossos gadgets, que até as crianças descartam numa velocidade que até nos magoa. Pois bem, compartilho aqui um ato de fruição com a minha própria imagem, é assim que me renovo, é assim que me vejo: quando posso criar sobre mim mesma e o mundo é que existo.


Joga glitter na Geni

14 de fevereiro de 2018 / Sem categoria / 0 Comments /

O que se vê já nas prévias para o carnaval belorizontino é uma mistura de pele, glitter e ativismo.

Se ano passado a simbologia do feminismo gritou em trajes portando imagens de úteros, de gestos limitadores e frases de clamor ao respeito, agora o ativismo foi para a pele. As tatuagens com frases tipo “Não é não” estão desfilando pelos blocos e os peitos, que ano passado ainda se escondiam sob tules, agora estão de fato desnudos. “As pessoas não estão mais tão assustadas com o feminismo. A postura do público masculino no nosso bloco ao menos, já mudou”, relata Nara Torres, regente do bloco Sagrada Profana.

Formado apenas por mulheres, o bloco trás canções de compositoras e intérpretes mulheres na música brasileira e vai de Chiquinha Gonzaga a Anitta.  “Quando decidimos cantar “Geni e o Zepelim” sentimos vontade de contar essa história de uma forma diferente e acabamos fazendo esse refrão: Joga flores na Geni; Joga flores na Geni; Ela é boa de abraçar; Ela é boa de seguir; Ela dá quando quiser; Bendita Geni”, conta Nara.

Faz seis anos que Claudia Manzo, chilena, conheceu o carnaval brasileiro: “Estava chegando no país e esperando pelo carnaval, que é algo que a gente tanto ouve falar, quando minhas amigas me alertaram sobre os lugares que eu não deveria ir porque são insuportáveis: muita gente, muito álcool e muito desrespeito.” Três anos depois, Claudia fundou o bloco feminista Bruta Flor juntamente com Viviane Coelho e Flor Bevacqua, tocando apenas composições de artistas mineiras. Carnaval é folia, e em Belo Horizonte também entendemos que os festejos podem e devem trazer um forte viés político. O ClandesTinas por exemplo, foi um bloco fundado a partir de um engajamento do Movimento de Mulheres Olga Benário como lugar de luta e resistência da ocupação Tina Martins.

A campanha “Carnaval sem assédio” foi uma surpresa. Parecia que as mulheres nem conseguiam imaginar que isso seria possível… Quem nunca foi assediada, abusada ou alisada no carnaval, sem consentimento? As baterias começaram a parar se tinha uma situação de abuso acontecendo no bloco. Os jornalistas da mídia convencional ainda perguntam se é de fato necessário ter blocos de mulheres, pois é exatamente quando eles começam a perguntar que a gente compreende que o discurso feminista está finalmente começando a ser visto. “A cidade abraçou o carnaval das mulheres. Estão entendendo que é uma necessidade”, ressalta Claudia.

O Então Brilha, bloco que sai no sábado cedinho da zona de prostituição da cidade, a famosa Guaicurus, vai fazer um ato feminista na abertura do desfile: “Fizemos uma assembleia de mulheres e o que eu sinto é que estamos mais interessadas em um diálogo que eduque positivamente. Trás mais consciência falar “Não é não” do que exibir a campanha “Tira a mão daí”, exemplifica Michelle Andreazzi, vocalista do bloco. O bloco que até então não havia conseguido dialogar com as mulheres que trabalham no local, esse ano sai com uma ala dedicada a elas, chamada “Vênus”. O espaço de disseminação do discurso feminista dentro do carnaval zona sul belorizontino está cada dia mais amplo e efetivo. “Não sabemos como isso mexe com a classe trabalhadora. Talvez traga ao menos alguma dúvida…” reflete Claudia.

“Sempre fazemos um cortejo no centro da cidade para levar essa discussão exatamente para o lugar onde acontece o racismo, que é fora da periferia”, explica Nayara Garófalo, que junto com Lucas Nascimento fundou o Angola Janga, em 2015. O bloco celebra as origens dos instrumentos, dos ritmos e da própria criação do carnaval como uma oportunidade de celebrar a cultura negra.  “A gente compreende que a mulher negra é ainda mais oprimida e no carnaval, objetificada. As  mulheres que ocupam os postos de liderança dentro do bloco ajudam muito no nosso projeto de fazer com que os homens negros saibam respeitar, ouvir e confiar numa liderança feminina” ressalta Nayara.

O feminismo aparece como um dos pilares dos blocos identitários do carnaval de Belo Horizonte que abarcam ainda os LGBT, os afro, e os de vilas e favelas. O crescimento da esquerda festiva na cidade muitas vezes pisa no seu próprio calo mas não perde a marchinha. Como não vivemos tempos de convergências massivas e sim de construções individuais de crenças e posicionamentos, cada um tem a oportunidade, a cada carnaval inclusive, de constituir a sua consciência a cada nova questão que emerge.

Ocupando bairros inteiros ou dialogando com aqueles que recebem a folia em suas ruas, afinal são mais de 450 blocos e portanto, muitas oportunidades de trabalhar o respeito à cidade, ao meio-ambiente, aos negros, às diversas opções sexuais, aos “nãos” recebidos e especialmente aqui, ao corpo e ao desejo femininos. E se o glitter orgânico ainda é inviável para a maioria, celebremos ao menos a sua existência. Não é mesmo Geni?

(Texto publicado pelo blog Agora é que são elas: http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/)


#Nãovoudeturbante

21 de fevereiro de 2017 / Conversation, Inspiration / 2 Comments /

Curiosamente, há um tempo atrás, observando as mulheres na rua, ou depois de ter visto alguma mulher que me impactou, na verdade colecionando as impressões marcantes do cotidiano na cidade, me dei conta de que eram as mulheres negras aquelas que mais me chamavam a atenção. As roupas, as cores, os cabelos, uma feminilidade corajosa e nova está tomando conta de uma cidade de certa maneira pacata nas expressões de um ‘estilo do corpo’ como Belo Horizonte. Mas sim, eram elas e são elas que nesse momento protagonizam uma nova presença valorosa nas ruas, na cultura, no pensamento, nas redes.

 

Abrindo a mala das fantasias de carnaval encontrei uma peruca ‘black power’ e senti pela primeira vez que aquilo deveria ser deixado de lado. Lembrei com amargor de uma festa à fantasia em que aluguei uma fantasia numa loja, a única que não improvisei na vida, e fui de ‘nega maluca’. E quando hoje, me deparei com textos e análises sobre o uso do turbante lembrei-me da tal fantasia. Que infelicidade me dar conta disso. Fiquei pensando nos personagens que nos fantasiamos no carnaval, o que eles estão a dizer, porque se fantasiar por exemplo, de índio? Que alegoria é essa que criamos uns dos outros?

 

São nesses lugares mais ingênuos que revelamos o tamanho da ferida aberta. Escolho dar um passo atrás, escutar o que estão tentando me dizer e parar de querer confrontar pelo direito de ter direito e abrir mão de meus direitos, pelo dever de respeitar o que está urgente agora.

 

Incrível texto da Eliane Brum sobre o tema: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/20/opinion/1487597060_574691.html


O dia em que desejei me tornar paisagem.

5 de fevereiro de 2017 / Inspiration, Journal / 0 Comments /

 

Sentei. Entre meu corpo e o infinito haviam arrecifes, algumas lagoas e uma tira bem fininha de mar suave. Sobre minhas pernas a areia fininha. Em minha direção uma brisa que balançava atabalhoadamente meus cabelos. Respirei, fechei os olhos. Era como se eu pudesse ser a paisagem. E fiquei alguns minutos ali, desfrutando de tudo aquilo que me distanciava de mim mesma e me aproximava daquele desbunde de mar e pedras e areias e cores e formas e texturas. Só queria ser como a paisagem. Tudo aquilo que calmamente era por ser imenso, que me impressionava por ser dimensão, que me conquistava por ser possível. Ser eu uma paisagem.


Imperfeita

13 de fevereiro de 2016 / Inspiration / 0 Comments /

Imperfeita

POR #AGORAÉQUESÃOELAS

Por Thais Mol*

Sou uma mulher de 39 anos, branca, classe média, bonita, alta e magra, simpática, gentil, uma mulher que sempre cumpriu com o que esperavam dela. Seguindo um roteiro bem comum, tinha como sonho de pré-adolescente, ser modelo.

Desde sempre trabalhei “com moda”. De modelo a jornalista, de editora a figurinista, fotógrafa, assistente de estilo, escritora e estilista. Aos 23 anos mudei para São Paulo. Fui convidada a trabalhar em uma revista de adolescentes que eu amava quando era adolescente. Rapidamente veio a real: um esquema limitado e cheio de nuances preconceituosas.

A publicidade e a indústria da moda funcionam a partir de jogos de poder que envolvem mulheres muito jovens – a modelo é muitas vezes a única figura feminina num estúdio – e a construção de sujeitas moldadas pelo consumo. Envolvem cifras astronômicas em campanhas e desfiles de arromba, totalmente descartáveis. Tudo isso forja um sistema que, quanto mais fechado, mais cobiçado. Quanto mais seleto, mais egocêntrico. Quanto mais inclusivo, mais preconceituoso.

Sabe essa idéia de que as mulheres se invejam, que estão todo o tempo a competir umas com as outras? É só olhar para as imagens de moda para entender: a modelo está num contexto idealizado, com um olhar de cima, com uma postura altiva, e numa situação que nem que a outra queira e faça tudo para estar ali, ela nunca estará. Passei a me sentir extremamente incomodada em seguir produzindo imagens que me afastavam das mulheres, que deixavam espectadoras sem solução palpável para suas questões, ou melhor, que as impulsionavam a não ter questões. A mulher que consome revistas de moda continua totalmente solitária em suas indagações íntimas.

Larguei tudo e fui sem objetivo nem tática viver em Londres. Mergulhei no começo de um encontro comigo mesma, que me levou da América Latina ao México, até um desfecho na Índia. Sim, eu ainda possuía uma arrogância cool de quem trabalha com moda, mas durante esses viagens entendi que o mundo estava ali para ser compartilhado por todos e que eu não era melhor que a outra ao meu lado.

E a parti daí, finalmente pude começar meu trajeto de encontro ao que me era próprio. Temas que não faziam parte do meu repertório, tais como o envelhecimento e a morte, viraram minhas obsessões. Eu, que havia feito botox aos 28 anos, estava me despindo do radicalismo das obrigações estéticas que sempre cumpri. Depois de tantos anos celebrando a beleza juvenil, não encontrei mais apoio nas imagens que me circundavam, de mulheres que ao invés de envelhecer, eram apenas substituídas por outras mais jovens. E aí veio o meu primeiro vídeo, “Trajeto”, em que decidi pintar as minhas rugas ao invés de escondê-las, para descobrir, na imagem final do rosto pintado, que aquele ato não era contra a beleza, mas contra o olhar anestesiado por uma idéia única e limitante de beleza.

E mesmo que hoje eu me dedique a produzir imagens e conteúdos que colaborem para criar uma visão mais critica sobre o lugar da mulher, sei que meu corpo está impregnado por uma época, por uma origem, por um trajeto, por inúmeros símbolos. E é uma trabalheira sem fim acordar e discordar do que aí está posto, fazer uma auto-crítica valente.

Se quero ser autônoma preciso começar pelo meu corpo, que é meu maior patrimônio. E para isso tenho que criar novas narrativas para esse corpo como objeto e ator do mundo. Narrativas do consumo, narrativas do valor, narrativas ético-estéticas que colaborem para uma diversidade saudável e uma auto-aceitação honesta. E, se hoje, o sistemão da moda tudo devora, finalmente aceito estar fora de moda.

Thais Mol é artista e empreendedora cultural